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Brilha nos olhos e aquece o coração: Saudade.

E eu bendigo, envergonhado,
Esse amor, avô do meu...

 

[Manuel Bandeira, em: Cartas de meu avô].



Pode nem parecer para quem olha de fora, mas, dentro de mim, eu sei: amar você foi a coisa mais linda que eu aprendi assim que me trouxeram para o mundo. Foram mais de quinze anos, vô. São lembranças verdes. Verdes, do jeitinho que imagino a grama daquela fotografia preto e branco, onde você está numa pose de moço sério. Um moço sério que também pulava o carnaval, naquela cidadezinha, entre fantasias e histórias bobas. Histórias que você trazia de longe e fazia chegar aos meus ouvidos com um gosto saudoso. Que me faz querer saber mais. Saber de você.

E eu te sei tão bem! Sei do coração que quase nem era teu, de tanto que era da gente. Da festa que fazia quando chegava, por sempre ter um doce no bolso. Do jeito como sempre me recebia com um sorriso e uma frase engraçada. Da maneira de contar as coisinhas de minha vó e do amor bonito que eu sempre notava a cada vez que a cozinha se enchia com a presença de vocês, ou o modo encantado como se entregavam a Deus durante todos os dias, mas principalmente aos domingos. Sei também das reclamações, do jeito ranzinza de alguns instantes, dos sustos.

Eu gosto mais é de lembrar você com as plantas, com os animais daquele seu grande terreno, e daquelas tardes amarelas no meio do quintal. Gosto de lembrar dos passarinhos, e do melro quase da família, parte da infância minha e dos primos. E do dia em que você chegou com um pintinho verde e um cor de rosa, para cada um de nós. Motivo de alegria por semanas.

E você não mudou mesmo não. Inda lembro das vezes que chegava da rua aos sábados enquanto eu acabava de chegar na sua casa, e me fazia babar com os doces mais gostosos do mundo. São as melancias que me lambuzavam no quintal, aos domingos. O coquinho quebrado entre conversas. O moço que me fazia cócegas quando eu buscava um afago em seu colo. O mesmo que me servia de boneca, enquanto assistia televisão, e me deixava amarrar seus cabelos, enfeitar com laços, e sorria de mim, menina. Que me contava que meu nome ainda estava escrito na minha árvore preferida do antigo sítio. Você, para mim, vai sempre ser o mesmo moço de cabelos de algodão, que chora quando sente vontade e tenta disfarçar uns olhos vermelhos que não deixam nunca de emocionar. Aí eu inevitavelmente penso: se todos fossem no mundo iguais a você...

Porque era lindo, vô. Era lindo caminhar ao teu lado e ver todo mundo te cumprimentar alegre. Ver as crianças te chamando de vô, como aquele dia quando descíamos a rua ao lado. Aquele sorriso banguela que te perguntou cadê meu doce? E a maneira como sorriu ao receber de você uma moeda para comprá-los. Foi linda a maneira como você disse à moça que essa é minha neta. E o jeito como ela me parabenizou falando que ele era muito querido por todo mundo. Lembro dos teus olhos nos meus, nessa hora. Eu gritava um eu te amo urgente. Ainda hoje acho que você entendeu. É um orgulho, vô, é um orgulho ter muito do teu sangue correndo misturado ao meu.

Para agora, eu só não queria que você deixasse de caminhar teus dias. Virar essa cidade de cabeça para baixo, com teu corpo gasto de vida. Ainda havia tanto a se gastar! Chegar com tua sacola nas mãos. Tomar teu café de cheiro delicioso, me oferecer um biscoitinho, sentar ao meu lado no sofá, perguntar sobre minha mãe, minha outra família. Sentar comigo na cama também, e espalhar todas as fotografias que remontam nossos momentos furtados do mundo. Deixou tua imagem bem grudada em cada canto daquela casa que  veste você. Tomou meu amor, me deu o teu, assim, desse jeito mudo e explícito. E se faltava alguma coisa, a gente inventava. Queria que estivesses aqui para que eu pudesse te beijar.

Bença, vô.



(Por Jaya M.; Adaptado.)

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